No livro 'Ensaio sobre a cegueira', José Saramago diz que a ‘a ausência de visão é viver num mundo onde se tenha acabado a esperança’. No entanto, se tivesse conhecido o time de futebol de cinco do Instituto de Cegos da Bahia (ICB), o escritor português perceberia estar redondamente enganado. Na quadra, com a bola rolando, os jogadores provam que, mesmo sem enxergar, a esperança permanece viva, uma fiel companheira de quem aprendeu a conhecer o mundo sem o auxílio dos olhos. Com a habilidade típica daqueles que driblam a escuridão, eles mostram com a bola nos pés que a visão é apenas um detalhe, pormenor há muito superado por homens talhados na dificuldade, que descobriram desde cedo que acreditar era a única opção para trilhar o caminho da vitória.
O time foi fundado em 2003, pelas mãos do professor de educação física do ICB Gérson Coutinho, que desde então assumiu o comando técnico da equipe. Mesmo com pouca estrutura, o grupo não precisou de muito tempo para mostrar que já havia nascido grandioso. No mesmo ano, disputou a Série B nacional do futebol de cinco para cegos e conquistou o acesso para a primeira divisão da categoria, festa que, apesar de intensa, não durou muito.
Classificado, o time do ICB encontrou no caminho adversidades financeiras, não conseguiu disputar a primeira divisão nacional de futebol paralímpico e acabou obrigado a voltar para a segunda divisão. Apesar de dolorido, o tropeço não parou o grupo. Determinados, eles procuraram parceiros e conseguiram montar uma estrutura capaz de fazer bonito já em 2006, quando conquistaram o título da Série B e o acesso para a elite da categoria, de onde nunca mais saíram.
Nos anos de 2007 e 2008, ficaram com a terceira colocação do campeonato nacional. A partir de 2009 é que a rica história de títulos teve início, com a primeira conquista da Série A. Nos anos seguintes, mais três títulos brasileiros, com destaque para o troféu do ano passado, adquirido de forma invicta.
- Ganhamos todas as partidas disputadas no ano passado. Marcamos 48 gols em seis partidas. Vencemos o regional pela primeira vez e faturamos o nacional sem perder para ninguém – diz com orgulho o técnico Gerson Coutinho.
Treinador linha dura, Coutinho busca ser a referência para os atletas que comanda. Entre sopros no apito e alguns gritos, ele conta que exige seriedade dos jogadores e aplicação nos treinos, realizados no complexo esportivo de uma faculdade localizada em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador.
- Eu acredito que quem não leva o esporte a sério não conquista resultados. Passo isso para os meus atletas todos os dias. Aqui, quem chega atrasado toma esporro. Durante o campeonato, ninguém bebe e ninguém faz noitada. Todos ficam focados no objetivo, que é o título – contou.
Além dos títulos, o time do ICB coleciona talentos. A equipe é a base da Seleção Brasileira paralímpica de futebol de cinco. Três atletas do ICB defenderam o Brasil na Paralimpíada de Londres, realizada no ano passado. O grande destaque é Jefinho, eleito melhor jogador do mundo da categoria em 2010.
- Temos uma equipe muito forte. Temos a base da Seleção Brasileira e outros atletas que já defenderam o Brasil, mas já não são convocados por causa da idade, como é o caso do Selmir. Somos tetracampeões brasileiros e conquistamos o respeito dos adversários onde quer que passamos – declarou o treinador, que trabalha no ICB desde 1983.
Falta grana, sobra vontade
Mesmo soberano dentro das quadras, o time de futebol de cinco do ICB ainda encontra obstáculos pela frente. Recentemente, a equipe foi convidada para participar do Bučovice Blind Football Cup 2013, competição europeia que vai reunir os principais times do ‘Velho Continente’. O torneio será realizado entre os dias 24 e 26 de maio, na República Tcheca.
Acho que dá para ser campeão desse torneio"
Gerson Coutinho
Única equipe fora da Europa convidada para o mundialito, o time do ICB corre o sério risco de ficar fora da disputa. O time precisa arrecadar cerca de R$ 30 mil para custear a equipamentos, passagens aéreas e estadias dos jogadores. Gerson Coutinho conta que corre atrás de patrocinadores interessados em apoiar a equipe e diz que até agora só conseguiu parte do dinheiro necessário.
- Uma parte do dinheiro foi arrecadada com uma empresa de alimentos. Não é o valor que vai fechar tudo, por isso ainda estamos atrás de empresas interessadas em patrocinar o time. Nossos planos incluem a viagem de oito atletas, o técnico e o chefe de delegação. A conta é de R$ 25 mil com passagens e hospedagem e R$ 5 mil com equipamentos, já que a competição será disputada em grama sintética e precisamos comprar chuteiras apropriadas para o campo e agasalhos, pois é inverno na Europa – pontua Coutinho.
Para atrair interessados, o treinador lembra que o time do ICB possui prestígio internacional, representará a Bahia e o Brasil em uma competição europeia e que deve chegar como favorito ao título da competição, que também contará com equipes como o Worcester BFC (atual campeão inglês), MTV Stuttgart (campeão alemão), BFC Praha (campeão tcheco), Saint-Mandé (time que possui a base da Seleção Francesa) e o Avoy UM Brno (organizador do torneio).
- Podemos representar o Brasil na Europa. E eu, sinceramente, acho que dá para ser campeão desse torneio. Temos um time muito forte. Com certeza vamos para vencer - afirma o treinador.
A competição será disputada com base nas regras da Federação Internacional dos Desportos para Cegos (IBSA), entidade máxima do futebol paralímpico. Cada equipe tem cinco jogadores, incluindo o goleiro. Os times podem ainda ter um guia, que fica posicionado atrás do gol adversário e emite sons para servir de referência para os atletas. A bola possui uma espécie de guizo que faz barulho para que os jogadores possam localizá-la pelo som. A partida é realizada em dois tempos de 25 minutos cada, com um intervalo de 10 minutos.
Jefinho, o craque
Jeferson Gonçalves, 23 anos , titular da Seleção Brasileira de futebol paralímpico e com muita história para contar. Jovem de sorriso fácil, ele foi vítima de um glaucoma congênito e tornou-se deficiente visual ainda criança. O diagnóstico da doença veio tarde, o que impediu a realização de um tratamento. Aos sete anos, ele já não enxergava, mas foi muito além do que qualquer olho poderia ver.
Jeferson Gonçalves, 23 anos , titular da Seleção Brasileira de futebol paralímpico e com muita história para contar. Jovem de sorriso fácil, ele foi vítima de um glaucoma congênito e tornou-se deficiente visual ainda criança. O diagnóstico da doença veio tarde, o que impediu a realização de um tratamento. Aos sete anos, ele já não enxergava, mas foi muito além do que qualquer olho poderia ver.
Jefinho chegou ao Instituto de Cegos da Bahia em 2009. Com 13 anos, já atuava pelo time do ICB. Participou de praticamente toda a história da equipe baiana e, a partir de 2004, começou a alçar voo próprio. Foi naquele ano que o jogador foi convocado pela primeira vez para a Seleção Brasileira. Participou de treinos, mas não atuou em nenhuma competição oficial. O primeiro torneio com a amarelinha só veio dois anos depois, quando representou o Brasil no Mundial de Futebol Paralímpico.
A partir de então, Jefinho colecionou títulos com a seleção nacional. Faturou medalhas nas Paralimpíadas de Pequim e de Londres. Em 2010, foi convocado para participar do Mundial da categoria. Começou na reserva, entrou na primeira partida, marcou gol e não saiu mais do time. Além do troféu, foi agraciado com uma premiação individual. Naquele ano foi eleito o melhor jogador do mundo de futebol paralímpico, título inesperado, mas muito comemorado.
- Eu não achava que ia ganhar. Tinha vários concorrentes de peso. Foi uma das melhores coisas que aconteceram em minha vida. Comecei o Mundial como reserva, entrei no primeiro jogo contra a China e marquei um gol. Fiz cinco gols no torneio e representei bem a seleção. Acabei sendo eleito melhor jogador do mundo no final das contas. Fiquei muito feliz – diz o jogador, declaradamente torcedor do Bahia.
Acostumado a encontrar dificuldades pelo caminho, Jefinho minimiza a falta de dinheiro para participar do Bučovice Blind Football Cup 2013. Para o jogador, o time do ICB sempre encontrou problemas para seguir em frente, mas nunca parou de caminhar. E não seria agora que deixaria de seguir seu caminho, de títulos e principalmente de superação.
- A gente sabe das dificuldades, mas foi assim no início de tudo. Esperamos que empresários ou o poder público contribuam para nossa viagem. Vai ser a Bahia representando o Brasil, e garanto que eu e meus companheiros vamos dar o máximo de nós mesmos para justificar esse investimento – concluiu Jefinho, que, apesar de ter conquistado o mundo, ainda mantém a humildade de um menino nascido no interior da Bahia.
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